a gente muda

Ted Weber Gola
7 min readFeb 21, 2023

Essa é uma reflexão sobre meus estudos e prática de combate ao racismo e outras formas de opressão estrutural. Falo da minha experiência de transformação pessoal, através da prática do amor em comunidade, guiado pelo pensamento de bell hooks. Minha intenção é de dialogar com pessoas atravessando esse caminho, rumo a uma sociedade mais justa, inclusiva e equânime para todas, todes e todos.

Já fui do tipo que dizia odiar carnaval, funk, axé, pagode, samba e especialmente sertanejo, entre muitas outras coisas, como futebol e muvuca. Não gostava de assumir que amava coisas simples como pão de queijo com requeijão, nem de dizer que arroz e feijão com farofa era meu prato favorito do mundo todo. À medida que eu não examino o preconceito sobre coisas tidas como populares ou sobre vivências que eu desconheço, como pessoa branca, hoje eu reconheço que o racismo vem na forma da ignorância que habita em mim. Levei muitos anos – metade da minha vida até agora – para aprender a valorizar o que há de mais precioso nessa terra Pindorama. Tanta coisa que refletia o brasileiro que rejeita seu ouro por pura ignorância sobre si mesmo.

No meio da pandemia, por curiosidade, fiz um teste de DNA para entender minhas origens para além das histórias que eu ouvi da família. Descobri que era algo como 99% europeu (como o número é dinâmico, hoje é 100%). Como seria possível que eu, de terceira e quarta gerações de famílias imigrantes no Brasil moderno, pudesse ter mantido essa carga genética europeia? Pensei comigo mesmo: talvez pelo mesmo motivo de eu ter sido tão arrogante culturalmente por grande parte da minha vida. Odiar qualquer coisa parece uma coisa “forte” quando a gente fala, não é? Eu descobri que é assim que cultuamos a opressão internalizada: odiando coisas, pessoas e atitudes que vão contra aquilo que valorizamos. Isso acontece muitas vezes de forma inconsciente, automaticamente, especialmente quando não prestamos atenção em nossos valores, e como eles se manifestam.

Não é surpresa para ninguém que conhece a história de uma sociedade autoritária, de origem escravagista, como a que vivemos no Brasil de hoje, o fato de que nossos gostos e valores são influenciados pela ideologia da supremacia branca. Nos vendem a ideia de que, ao comprar coisas como roupas, carros, cosméticos, ou costumes, como apreciar culinárias, eleger estilos de moda e artistas do norte global (europeus ou norte-americanos em especial) como ídolos ou ideais, nos tornamos indivíduos mais “sofisticados”. Ter crescido ouvindo Mozart, Enya e Pink Floyd já foi razão de orgulho para mim, o que se contrapõe à vergonha de ter chegado aos 20 anos sem nem conhecer direito Elza Soares e Milton Nascimento.

Essa mudança de perspectiva não foi algo que aconteceu pelo simples fato de eu ter amadurecido com o passar dos anos, pois eu vejo tantas pessoas ao meu redor, na minha família, no meio do trabalho, que têm o dobro da minha idade e nunca se questionaram sobre os suas ditas “preferências”, muitas vezes sob o pretexto de que “gosto não se discute”. Para gostar ou não de alguma coisa, é preciso antes conhecer. Essa premissa é profundamente incômoda, eu sei. Mas eu acredito ser verdadeira porque precisei, com honestidade, me reconhecer racista, homofóbico, transfóbico, misógino, classista e capacitista, antes de ser capaz de iniciar o processo de desconstrução de toda essa opressão internalizada.

A jornada emocional desse processo de desconstrução é e tem sido árdua e intensa, como qualquer luto de uma parte significativa de nós mesmos. Passa pela culpa de se ter os privilégios que tenho como homem branco cis não-atípico, até onde esses privilégios me levaram. Ao mesmo tempo, vem a vergonha por coisas que disse e/ou pensei um dia, e depois o medo de ser mal interpretado, medo de admitir ser tão ignorante em tantos assuntos básicos. E, por fim, uma desorientação plena da minha identidade: quanto disso é meu versus quanto herdei da sociedade onde cresci? Qual é a sobreposição das partes herdadas e cultivadas, intencionalmente ou não, por mim? E o mais importante: como me desfazer de tanto ódio?

Apesar de buscar, infelizmente ainda não encontrei um guia completo para atravessar a experiência de viver essas emoções e tantos questionamentos. Contudo, nos últimos anos, bell hooks e Sonya Renée Taylor foram fontes generosas da graça que tanto precisei. Ambas autoras me deram acesso a uma riqueza de pensamentos sobre o amor e a comunidade como as maiores potências de transformação que existem para combater o ódio, e contam sobre suas experiências desenvolvendo métodos de pensar, agir e ser guiados pelo amor, de forma radical, para avançar na desconstrução de todas as formas de opressão: internalizada, interpessoal, institucional e sistêmica.

Foi com o aprendizado de ambas autoras que ano passado aprendi que agir amor não é possível sem comunidade. Com a pandemia dando alguma trégua, e para aprofundar esses temas, decidi retomar um grupo de estudos que teve início em 2006, chamado Filósofa. Para guiar essas discussões, convidei o grupo a nos apoiar sobre a obra fundamental Tudo sobre o amor e novas perspectivas, de bell hooks. Após a leitura e reflexão do primeiro capítulo, fizemos um exercício de imaginar como seria viver uma vida guiada pelos seis princípios do amor como ação: compaixão, cuidado, compromisso, responsabilidade, respeito e confiança. Notando como conceitualizar a respeito disso seria difícil, e potencialmente raso no plano das ideias, propusemos o desafio de refletir e exercitar o amor com todos esses princípios de forma ativa. A proposta desse exercício era fazer com que cada pessoa selecionasse os três valores mais importantes ou desafiadores de aplicar no cotidiano.

Depois de um mês de prática, trocamos aprendizados. Começamos falando sobre confiança. Quase todas as pessoas tinham algo a dizer sobre este valor, como ele nos convida a uma reflexão mais profunda sobre o momento em que estamos, e do que precisamos. Falamos da confiança como uma coberta que mantém o calor do amor, mesmo na falta dos outros elementos. Falta, como por exemplo, do cuidado. Em teoria, todos deveríamos oferecer cuidado a nós mesmos e a quem amamos. Na prática, esse cuidado requer tempo e espaço que às vezes – e muito frequentemente – não há. A confiança traz a esperança de que esse cuidado possa surgir em algum momento, e fortalece o compromisso de amar. A confiança, junto com a compaixão, também permite uma soltura e uma compreensão maior: nem sempre haverá todo aquele cuidado que precisamos. A compaixão permite que vejamos para além das expectativas e do imediatismo que nos assola como indivíduos, e aceitemos melhor as condições reais para a prática de amar.

Ao marinar nesse caldo de confiança, cuidado e compaixão, nos atentamos à cumbuca necessária para colocar isso tudo, feita da mescla de fibras de compromisso, respeito e responsabilidade. Refletimos sobre como, de modo geral, estes princípios podem ser valores mais tangíveis, mais facilmente executados e observados no dia-a-dia. Fica mais fácil amar quando:

  • Tornamos cada um dos valores um verbo. Por exemplo: de responsabilidade para responsabilizar. Responsabilizando cada pessoa com seus respectivos atos, não permitindo que faltas (de cuidado, compaixão, etc.) aconteçam sem ser notadas e/ou reparadas, nos implicamos na realidade em que vivemos.
  • Com respeito, criamos consciência de como relacionamentos passados e a ancestralidade afetam condicionamentos, às vezes gerando possibilidades ou dificuldades de superar traumas que, por sua vez, como gatilhos, podem interferir significativamente em nossa capacidade de confiar e amar de forma plena.
  • Com compromisso, é possível gerar resiliência para superar dificuldades impostas por desafios diários, e estruturar intencionalmente rituais e rotinas que sustentem a mudança requerida para a prática de amar, de forma consciente.

A riqueza de trocas foi inspiradora, e muito importante para avançarmos na discussão e no desafio de amar no dia-a-dia. Sou profundamente grato a todas as pessoas que participaram dos encontros desse grupo de estudos, em especial Carlos Hernández Tellez, Charles Omoregie, Lina Lopes e Robson Rodriguez, por compartilhar histórias íntimas e pensamentos profundos sobre amar com o grupo, e por terem nos ajudado a ir além da teoria, com a prática de amar em comunidade. Passei a entender o significado de ancestralidade de forma ainda mais explícita com vocês, e como isso está ligado à nossa capacidade de amar.

Para mim, amar é coragem para ir além. Seja no trabalho, em família ou na rua, encarnar o amor significa ser capaz de romper preconceitos e admitir erros para acolher a vida, complexa e contraditória como ela pode ser. Quando noto uma dinâmica de poder condicionando o silêncio ou perpetuando qualquer tipo de violência, não fico mais calado, pois não sou mais capaz de fingir que nada está acontecendo. Posso levar um tempo para processar, dependendo das nuances, mas me comprometo a tomar uma atitude. Ao mesmo tempo, busco entender que as pessoas são capazes de acessar apenas o que é possível dadas as circunstâncias, e que aquela é sua melhor versão no momento.

Hoje, tento estar atento a cada ambiente onde me encontro.

  • Primeiro, em relação à superfície, olho ao meu redor: quantas pessoas brancas, pretas, indígenas ou orientais estão presentes?
  • Se vou a um seminário, evento ou apresentação de qualquer tipo, penso em relação à estrutura: quem está servindo ou sendo servido nessa dinâmica? Há a possibilidade de uma troca justa e honesta dadas as circunstâncias?
  • E quanto à substância, o propósito do conteúdo: quais histórias ou experiências estão sendo centradas aqui?

Isso tudo se materializou para mim neste Carnaval. Depois de toda uma vida me distanciando das festividades do tipo, esse ano fui com meu marido ao meu primeiro bloquinho de rua. Apesar de ora ter que lidar com a chuva, ora o medo de ser pisoteado pela multidão, foi uma experiência mágica. A chance de ter visto a minha cidade natal, São Paulo, tomada por gente de todas as raças, gêneros e classes sociais, com tamanha alegria estampada nos rostos, respeito e gentileza em seus atos e palavras, e apresentações sublimes como a de Obá Ilu De Min, foi muito inspirador. Talvez tenha sido apenas a projeção do tanto que definitivamente mudei, mesmo assim honro o momento presente. Ando sonhando acordado, e celebro com coragem o que o amar me inspira.

Feliz Carnaval!

Montagem com fotos tiradas por mim do maravilhoso grupo Ilu Obá De Min em sua apresentação de "AKÍKANJÚ: Pensamento e bravura de Sueli Carneiro".

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